Duas equipas de investigadores levaram a cabo, no verão e no início do outono deste ano, campanhas de monitorização de populações de cetáceos e tartarugas marinhas nas águas das Canárias, no âmbito de um projeto europeu de colaboração entre Espanha e Portugal para verificar o seu estado, integrado no segundo ciclo da Diretiva-Quadro Estratégia Marinha nas ilhas da região da Macaronésia (Açores, Madeira e Canárias), que dispõe de fauna ainda pouco estudada.
O projeto, designado Mistic Seas 2, consiste na recolha de dados de estimativas de abundância de espécies como a tartaruga-comum, vários tipos de golfinhos, cachalotes, zífios e baleias-piloto-tropicais, através de uma metodologia comum baseada em transectos de amostra, isto é, locais previamente indicados para realizar os avistamentos.
Mistic Seas 2 coordenado pelo Fundo Regional para a Ciência e Tecnologia dos Açores e cofinanciado pela Comissão Europeia, que se desenvolve desde março de 2017 até março de 2019.
Cinco investigadores (quatro biólogos marinhos e um analista de sistemas de informação geográfica) e um diretor da União Temporária de Empresas (UTE) Ceamar-Alnilam-ADS levaram a cabo, entre setembro e outubro, uma campanha oceânica por todo o arquipélago das Canárias, a bordo de um barco que navegou no máximo a 12 milhas da costa e pelos canais entre as ilhas.
Mónica Pérez, gerente da UTE e presidente da Ceamar, esclarece que o trabalho consistiu em navegar a uma velocidade constante e com dois observadores que, da proa, avistavam o horizonte. “Toda a informação dos avistamentos foi registada, bem como as características ambientais, como o estado do mar ou as condições de visibilidade, isto é, todos os fatores que podem afetar os animais”, acrescenta.
GRUPOS DE MAIS DE 500 GOLFINHOS
Os investigadores tiveram grandes dificuldades de navegação devido às más condições do mar, o que provocou um decréscimo do número de avistamentos em outubro, embora Pérez refira que viram “dois grupos muito grandes de golfinhos-pintados, com mais de 500 animais.”
Pérez esclarece que o barco percorreu áreas conhecidas de elevada densidade de cetáceos e também zonas com escassa informação, pelo que não quer pronunciar-se sobre se as alterações climáticas afetam os animais devido ao aumento da tempertaura do mar, uma vez que não há dados suficientes para tirar conclusões a esse respeito.
O aumento da temperatura média da superfície da Terra é já 1,1ºC superior à dos níveis da era pré-industrial. No Acordo de Paris, chegou-se a um consenso científico de que o planeta não deve superar os 2ºC e que os países devem inclusive fazer esforços para reduzir os gases de efeito de estufa para que não ultrapasse 1,5ºC, dado que a partir desse patamar podem desencadear-se consequências irreversíveis nos padrões climáticos, algo que já está a ocorrer, com eventos de efeitos devastadores em muitas zonas do globo (ciclones, perda de gelo marinho na Antártida e no Ártico, inundações, ondas de calor, seca, furacões, etc.).
“Em setembro tivemos poucos avistamentos, o que é estranho comparado com o que esperávamos e com a nossa experiência em anos anteriores, mas isso não quer dizer nada, porque em outubro houve mais. Se este projeto se repetisse todos os anos, dentro de uma década poderíamos ver uma tendência. Mas não há dados prévios que permitam estudar a tendência a longo prazo. É impossível saber se as alterações climáticas estão a afetar as espécies”, acrescenta.
No entanto, aponta que os investigadores avistaram “algo supreendente”: dois grandes grupos de golfinhos-pintados, um no norte de Lanzarote e outro em La Palma, algo que também se verificou na Madeira. Quanto à tartaruga-comum, não houve muitos avistamentos devido às más condições do mar, que fazem que as probabilidades de ver esta espécie à superfície diminuam.
Os biólogos podiam sair do transecto pré-estabelecido se se encontrassem a menos de 15 minutos ou a uma distância inferior a duas milhas quando da deteção da presença de cetáceos ou de tartarugas, a fim de facilitar a sua investigação. Durante as longas horas de trabalho, havia animais que nadavam junto ao barco e outros a uma maior distância, sendo necessário navegar em direção a eles. “Entre quatro e seis quilómetros, é comum encontrá-los”, acrescenta Pérez.
EM BARCO PNEUMÁTICO PELO SUDOESTE DE TENERIFE
Por outro lado, no âmbito do projeto Mistic Seas 2, também foi levada a cabo uma campanha costeira, a cargo da Sociedade para o Estudo dos Cetáceos no Arquipélago Canário (SECAC), na Zona de Especial Conservação Franja Marinha Teno-Rasca, que engloba todo o sudoeste da ilha de Tenerife.
Os investigadores da SECAC lançaram-se ao mar a bordo de um barco pneumático durante 32 dias, entre agosto e outubro, durante os quais percorreram 1800 quilómetros e registaram 181 avistamentos de sete espécies de cetáceos e de tartaruga-comum, distribuídos da seguinte forma: 90 de tartaruga, 53 de baleia-piloto-tropical, 29 de golfinho-roaz, cinco de golfinho-pintado-do-atlântico e um de golfinho-riscado, golfinho-de-fraser, cachalote e zífio. Capturaram também 21 tartarugas, três das quais acabaram num centro de recuperação de fauna marítima (La Tahonilla, no norte de Tenerife) porque apresentavam lesões provocadas pelas malhas das redes de pesca. Um dos exemplares tinha um anzol atravessado na boca.
Todas as manhãs, bem cedo, os investigadores da SECAC subiam a bordo do barco pneumático no porto de Los Gigantes e, depois de apontar as condições ambientais do dia, davam início ao seu trabalho. Cada vez que havia um avistamento, registavam o tipo de espécie, o número de animais e outras informações diversas. As populações de baleia-piloto-tropical eram as mais abundantes na zona sob a influência do Teide, onde se verificam microclimas diferentes, desde nuvens baixas a céu limpo, chuviscos em algumas ocasiões e, pontualmente, ondulação nas águas do Atlântico.
Os grupos de golfinhos-pintados, mais tímidos, apareciam a alguma distância da lancha, por vezes acompanhados de bandos de pardelas-de-bico-amarelo que observavam das alturas, em busca de peixes apara-lápis para se alimentarem. Pelo contrário, as baleias-piloto-tropicais nadavam e mergulhavam sem medo e em algumas ocasiões até se aproximavam da lancha e ficavam ali paradas, com metade do corpo submerso. Nesses momentos, podia-se ouvir a sua respiração, até que seguiam o seu caminho, dando saltos sobre a água.
Martín, cetólogo com 30 anos de experiência, entra no debate sobre as alterações climáticas e afirma que “o aquecimento do oceano vai provocar uma perda da biodiversidade nas zonas tropicais e subtropicais do planeta e um aumento da temperatura nas zonas temperadas e frias, para onde irão as espécies tropicais”.
“Tivemos muitos mais avistamentos em todas as campanhas e nesta detetámos menos golfinhos-roazes. Nos últimos 10 anos, o número médio do tamanho dos grupos sociais de golfinhos decresceu e atribuímos a culpa à pressão das atividades humanas e à deterioração dos habitats. Antes, era muito comum ver grupos de 30 ou 40 animais, agora são mais pequenos”, afirma.
Garante que “nesta campanha, subjetivamente, registámos menos avistamentos de golfinhos-roazes e não sabemos se é algo pontual ou uma coincidência” e acrescenta que “são mais esquivos com as embarcações que em anos anteriores e é muito difícil investigá-los”, pelo que concorda que é necessário fazer uma monitorização a médio e longo prazo das populações destes animais marinhos nas Canárias.
CAPTURA E SOLTA DE TARTARUGAS
Uma peculiaridade da campanha da SECAC é a captura de tartarugas-comuns. Quando os investigadores detetavam algum exemplar à tona da água, Vidal lançava-se ao mar para a recolher. Depois de a terem na lancha, levavam-na a um porto próximo, onde lhe extraíam uma amostra de sangue e outra de tecido, colocavam-he um microchip (no caso de não o ter ainda) para os seus movimentos estarem disponíveis ao público através de vários sites (siare.herpetologica.es e www.seaturtle.org, por exemplo) e recolhiam dados biométricos de peso e medidas corporais. Posteriormente, o animal era posto em liberdade no mar.
Chegam às Canárias tartarugas-comuns jovens, de até quatro anos de idade, geralmente nascidas na Flórida (Estados Unidos) ou em Cabo Verde. “São muito difíceis de apanhar porque são muito tímidas. Se notam qualquer movimento ou som, vão para baixo, perdemo-las e não voltam a subir”, explica Carmen Meléndez, oceanógrafa da SECAC.
O trabalho dos biólogos marinhos, como o de muitos outros cientistas, é uma montanha-russa de sensações: “É um trabalho duro, as pessoas têm uma visão muito romântica da investigação, mas as campanhas no mar são difíceis. Para conseguir resultados são necessárias inúmeras horas de investigação”, afirma Vidal.
O projeto Mistic Seas 2 contribui para atenuar as lacunas que ainda existem no estudo de uma das zonas do planeta com maior biodiversidade. Horas de dedicação nos arquipélagos dos Açores, da Madeira e das Canárias vão acabar por dar frutos e permitir que conheçamos um pouco melhor as populações de mamíferos, tartarugas e aves marinhas e vão servir para pôr em evidência a riqueza da Macaronésia, graças à aliança dos governos de Espanha e de Portugal.